É muito comum ouvir alguém ser chamado de “rainha da Inglaterra”. Essa expressão, apesar de parecer um elogio, é marcada por um significado negativo, pois se refere a alguém que possui um título mas não exerce nenhum poder de fato. É igualmente frequente ouvir comentários subestimando o trabalho da monarca britânica (e de toda a sua família), sob o argumento de que ela não trabalha e leva uma vida perfeita.
No entanto, sou um pouco cética a este respeito e tenho dificuldades de aceitar que a Rainha Elizabeth II tem uma vida sem problemas nem responsabilidades. Sim, seus problemas e deveres são muito diferentes dos nossos, mas não deixam de existir. Basta acompanhar os noticiários para ver que ela viaja com frequência, mesmo com 90 anos de idade, e tem mais aparições públicas do que qualquer membro da família real.
Nunca acreditei que esta tenha sido a vida verdadeiramente desejada por ela e sempre a admirei, já que é uma mulher extremamente forte que reina há mais de 60 anos, quando o mundo era muito mais machista do que hoje em dia. Por estes motivos, estava contando os dias para assistir à série The Crown. Vi todos os episódios em uma semana, mas o texto demorou para ser escrito porque eu não parava de refletir sobre o que tinha visto.
The Crown é a série mais cara produzida pela Netflix até agora e não é preciso assistir a todos os capítulos para entender o porquê. Do figurino deslumbrante aos cenários grandiosos, passando pela excelente trilha sonora e o grande número de atores no elenco, é possível ver que todo o dinheiro foi muito bem utilizado.
Consigo entender por quê algumas pessoas a consideram “devagar” ou “parada”, já que cada episódio tem uma hora de duração e não se apressa na narrativa. Ao contrário: destrincha cada acontecimento com muita precisão. E talvez seja justamente por isto que eu tenha me encantado.
O roteiro de Peter Morgan (responsável também pelo roteiro do filme A Rainha) é impecável, não apenas pelos diálogos, mas também pelas escolhas do que mostrar ao telespectador e do que deixar na nossa imaginação. Por exemplo, não vemos a reação da então Princesa Elizabeth quando recebe a notícia da morte de seu pai: somos, na verdade, deixados de lado e vemos a cena de longe, sem que possamos escutar o diálogo, tal como os demais súditos presentes no local. Esta técnica se repete em outros momentos, sendo que um dos que mais me marcou foi durante uma discussão entre a Rainha (Claire Foy) e o Príncipe Philip (Matt Smith) no carro no episódio final.
Outro ponto de destaque é a maneira como a Rainha reage às situações. Mérito novamente do roteirista mas também de Claire Foy, capaz de interpretar uma personagem extremamente complexa, em eterno conflito interno. Em uma mesma cena, podemos ver como a pessoa física (Elizabeth) e a jurídica (Rainha) debatem incansavelmente através das expressões discretas e contidas de Claire Foy. A decisão de negar o casamento da irmã Margarete (Vanessa Kirby) com o policial Peter Townsend (Ben Miles), por exemplo, é cuidadosamente refletida e debatida pela Rainha e o momento em que ela anuncia isso à irmã é uma das melhores cenas da temporada: a Rainha não se exalta, muito menos eleva o tom de voz. Situação semelhante ocorreu quando ela foi obrigada a repreender o então Primeiro Ministro Winston Churchill (John Lithgow) ao descobrir que ele havia escondido seu verdadeiro estado de saúde.
O momento mais importante para mim, no entanto, foi uma conversa entre a Rainha e sua avó, a Rainha Mary (Eileen Atkins), na qual ela reclama que não tem poderes de fato e é lembrada pela sua avó que, na verdade, “não fazer nada” é tão difícil quanto ter que tomar alguma atitude. Isto porque um sorriso errado ou um aceno com a cabeça pode indicar que a Rainha está tomando alguma posição política, o que feriria a Constituição.
Impossível não refletir sobre a grandeza e a importância dessa conversa: basta imaginar se não pudéssemos opinar sobre nenhum aspecto de nosso País! Já tivemos uma ditadura em que havia censura, mas muitas pessoas, inclusive esta que vos fala, nascida no final da década de 1980, não sabe o que é “não poder opinar”. E a Rainha está proibida de fazê-lo há mais de seis décadas! Deve sorrir e ser cordial com os mais variados chefes de Estado e de Governo que conheceu, independentemente se gosta da pessoa ou não (aliás, nunca saberemos de quem ela gosta ou não). Esta cena, por si só, já faria de The Crown uma série especial para mim. Mas, claro, há muito mais.
Se pudesse, mencionaria o elenco inteiro e discorreria sobre cada personagem, pois todos me fascinaram, cada um a sua maneira. Menciono apenas o Duke de York (Alex Jennings), irmão de George VI (Jared Harris) que renunciou ao trono em 1936 para se casar com Wallis Warfield (Lia Williams). Como ela era divorciada, o relacionamento do então monarca era proibido pela Igreja que ele próprio encabeçava. O episódio de coroação de Elizabeth é propício para que possamos ver como ele alega não ter se arrependido de sua decisão e como, de fato, se sente ao assistir à sua sobrinha tomar o lugar que um dia foi seu.
A trilha sonora também desempenha papel importante, pois sabe dar o tom correto às cenas. A música tema foi composta por Hans Zimmer (responsável sempre por trilhas mais fortes, como Piratas do Caribe, Gladiador, A Origem, a mais recente trilogia Batman, entre tantos outros) e ele também produziu a trilha sonora dos episódios. A composição ficou a cargo de Rupert Gregson-Williams, cujo trabalho mais recente foi a trilha sonora de Até o Último Homem, dirigido por Mel Gibson.
Um último elemento que não poderia ser esquecido é o figurino impecável, de responsabilidade de Michele Clapton, que também faz o figurino de Games of Thrones.
The Crown é, portanto, uma série perfeita para quem quer se sentir dentro do Palácio de Buckingham e acompanhar a trajetória de uma das mulheres mais importantes da História recente. Não à toa a Netflix pretende fazer mais cinco temporadas, cada uma representando uma década do reinado de Elizabeth II. E eu já estou ansiosa para a próxima.